quarta-feira, 20 de março de 2013

Não existe uma boa sociologia sem história

 

Não existe uma boa sociologia sem história - Hélio Jaguaribe 

Como descrever o Brasil? A pergunta pode parecer atual, mas ocupa há mais de 50 anos o pensamento do cientista social.
por Leonardo Pimentel
   
Membro da Academia Brasileira de Letras, o cientista social Hélio Jaguaribe participou da fundação do Iseb e foi um dos grandes pensadores do nacional-desenvolvimentismo
Como descrever o Brasil? A pergunta pode parecer atual, mas ocupa o pensamento do cientista social Hélio Jaguaribe há mais de meio século. Na década de 1950, diante da necessidade de repensar as relações sociais no país e prepará-lo para o desenvolvimento, ele participou da fundação do Ibesp e do Iseb, dois dos mais importantes núcleos de pensamento político, econômico e social do período. Após condenar publicamente o regime militar instaurado pelo golpe de 1964, lecionou em importantes instituições estrangeiras, entre elas a Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Secretário de Ciência e Tecnologia do governo Collor, em 1992, Jaguaribe é hoje decano emérito do Instituto de Estudos Políticos e Sociais (Ieps) e membro da Academia Brasileira de Letras desde 2005 – onde sucedeu o economista Celso Furtado – e vem se dedicando nos últimos anos a trabalhos mais abrangentes, como os dois volumes de seu Um estudo crítico da História e, mais recentemente, O posto do homem no cosmo, marcadamente influenciado pela filosofia. Mas isso não diminui suas preocupações quanto ao futuro do país, especialmente por considerar o Brasil excessivamente dependente do mercado financeiro internacional. Para falar sobre sua visão da história, que considera fundamental para a sociologia, e, claro, sobre política e desenvolvimento, Jaguaribe, que hoje tem 83 anos, recebeu a equipe de BrHistória em seu escritório no Ieps, no Jardim Botânico, zona sul do Rio de Janeiro.

BrHistória – O senhor participou da formulação do pensamento nacional-desenvolvimentista dos anos 50. Hoje a questão está na ordem do dia. É possível comparar o desenvolvimentismo nacionalista daquele período com o atual?

Hélio Jaguaribe – Para analisar o pensamento nacionalista de hoje, temos de levar em conta as modificações que ocorreram no mundo no final do século XX. Acredito que não se possa falar mais de um “nacional-desenvolvimentismo” porque a base nacional se tornou insuficiente para um país se tornar auto-sustentável. Diante do processo cada vez mais acelerado de globalização e do unilateralismo imperial americano, vivemos uma situação na qual os países subdesenvolvidos – e entre eles eu incluo o Brasil – estão perdendo as condições de ter um destino histórico isolado. Eles tendem, num prazo não muito longo, a se tornar meros segmentos indiferenciados do mercado internacional, dominados internamente por multinacionais e externamente pelos Estados Unidos.
BH – Como se dá essa dominação externa?

HJ – O império americano, ao contrário de impérios clássicos, como o romano e o britânico, não se caracteriza pela formalização de seu predomínio. Ele atua de modo muito semelhante a um campo gravitacional, usando uma série de constrangimentos – econômicos, financeiros, tecnológicos, culturais, políticos e, quando necessário, militares – que compelem as áreas sob sua influência a seguir a lógica do mercado financeiro, que é o verdadeiro corpo do império. Através desses constrangimentos, os Estados Unidos manipulam as políticas externas desses países. De sorte que eles conservam aparências de soberania: bandeira, hino, exército e até eleições, mas os dirigentes, querendo ou não, são obrigados a seguir a linha de Washington.

BH – Pode dar exemplos?

HJ – O próprio caso brasileiro. Por que um homem extremamente inteligente como Fernando Henrique Cardoso, cuja vocação social-democrata não pode ser posta em dúvida, exerceu uma política econômica neoliberal? Por que Lula, depois de ter lançado vitupérios contra a política econômica de Fernando Henrique, segue a mesma política? Porque este país ficou subordinado à lógica do mercado financeiro internacional.
BH – Mas como fazer uma política econômica fora dessa lógica?

HJ – É necessário inicialmente estabelecer formas seletivas de inserção no mercado internacional, com as quais o país recupera uma liberdade de Estado para administrar a sua economia. Isso exige uma posição diferente daquela da década de 50, muito mais autônoma. Uma das condições para o êxito do nacional-desenvolvimentismo hoje é que ele se converta no regional-desenvolvimentismo. Qualquer grande política de desenvolvimento na América do Sul está ligada à integração sul-americana, que depende da consolidação do Mercosul. E esta depende de uma sólida aliança argentino-brasileira.

BH – Por que os partidos de centro-esquerda e esquerda no Brasil, quando no poder, não implementam as propostas de seus programas partidários?

HJ – Historicamente, os partidos de esquerda têm uma formulação de projeto superior à sua exeqüibilidade e precisam rever essa formulação quando chegam ao poder. Faz parte de uma retórica de esquerda propor coisas que só serão viáveis em regimes revolucionários – e a esquerda moderna, felizmente, não é mais revolucionária, é reformista. Ao assumir o poder, precisa fazer um ajuste entre o que deseja e o que é exeqüível.
BH – E qual a margem do que é possível?

HJ – Ela é muito maior do que aquilo que se presume. Todos os países que querem desenhar uma política de esquerda devem considerar primeiro o seguinte: “Dentro de que condições eu estou inserido no mercado financeiro internacional? Vamos rever as condições do Estado que tornam possível seguir políticas de esquerda”. Dentro de certos limites, claro.

BH – O jurista Flávio Konder Comparato defendeu a criação de uma agência que gerenciasse políticas de desenvolvimento com certa independência em relação ao governo. Isso é viável?

HJ – Mais que viável, é necessário. Só não sei se é necessário uma agência própria, pois, em parte, já existe um órgão para executar a política de desenvolvimento, que é o BNDES. O que eu não tenho dúvida é sobre a necessidade dessa política, que deve se afirmar como uma política de Estado. Por isso mesmo os objetivos do neodesenvolvimentismo brasileiro devem ser formulados com a cautela da sua exeqüibilidade, não fazer propostas utópicas que desmoralizem depois o projeto. Fazer projetos audaciosos, certamente, mas dentro de limites muito bem medidos do exeqüível.
BH – Esse tipo de política suprapartidária é possível dentro do quadro partidário brasileiro?

HJ – O que acontece é que os nossos partidos estão totalmente desfigurados. De um modo geral, tornaram-se legendas prêt-à-porter. Os deputados passam de um para outro conforme conveniências de curtíssimo prazo. As exceções são o PSDB e o PT, que têm consistência própria, mas também se desfiguraram enormemente. O PT de maneira lamentável. Um partido que pretendeu ser, durante certo tempo, o modelo de ética e de conduta irreprimível tornou-se um partido de assalto ao Estado. Raras vezes houve uma deterioração partidária tão triste como a desse partido, que teve um papel histórico extraordinário em anos anteriores. Locupletaram-se de postos públicos para extrair ilegitimamente recursos, já não digo para o bolso próprio, mas para o bolso do partido. Seria uma visão bolchevique em que tudo vale para o partido, que é mais importante que a nação e que o Estado. Já o PSDB não é dado a achaques, a assaltos, mas sim à inocuidade. O partido perdeu as bandeiras, perdeu seu sentido social-democrata e virou uma espécie de nova UDN. Tem muita gente boa, gente que vale a pena convidar para um bate-papo, mas não está a serviço de uma causa. Hoje, o PSDB teria a oportunidade de convocar as forças da esquerda, a democracia social. Mas ele não está fazendo isso.

BH – Por quê?

HJ – A resposta depende de uma análise interna do partido. Eu suponho que isso se deve a duas limitações do principal líder do PSDB, Fernando Henrisque, a despeito de sua excepcional inteligência. Primeiramente, ele é um pouco desiludido da mensagem social-democrata, o que o faz dar ao mercado mais importância do que ele merece. Em segundo lugar, é da personalidade de Fernando Henrique um toque hamletiano, uma coisa entre ser e não ser, fazer e não fazer, e isso não permite exercer uma liderança vigorosa.
BH – Na década de 50 o senhor participou da fundação do Iseb. O que motivou esse projeto?

HJ – Eu e várias outras pessoas chegamos a uma análise sócio-histórica das condições brasileiras, mostrando que o país estava estagnado dentro de uma perspectiva semicolonial. E a combinação de forças entre o latifúndio e o mercantilismo obstava o desenvolvimento porque estava satisfeita com o statu quo. Concluímos que era necessário um projeto de desenvolvimento que exigisse uma estrutura de classes distinta. Era necessário agremiar a burguesia nacional, os setores técnicos da classe média e o operariado avançado. E, a partir dessa base, lançar o projeto nacional-desenvolvimentista. Foi de certa forma o que se fez no governo de Kubitschek e, talvez ainda mais, no segundo governo de Vargas.

BH – Essa idéia de aliança entre operariado e burguesia industrial provocou críticas na esquerda?

HJ – É necessário fazer uma distinção entre a esquerda dogmática e a esquerda finalística. A primeira parte do dogma para a apreciação da realidade. A segunda estuda a realidade e vê como pode inserir nela um projeto exeqüível de esquerda. Na época do Iseb, quem estava por trás desse projeto era exatamente a esquerda finalística. Já a esquerda dogmática ficou limitada a algumas pessoas que escreviam artigos. Mas mesmo isso era muito raro. Eles conversam mais do que escrevem (risos).
BH – Hoje faz falta esse tipo de pensamento organizado para o desenvolvimento?

HJ – Faz muita falta. Existe até um potencial, mas este movimento ainda não conseguiu se concretizar em formas operacionais satisfatórias. Acho, infelizmente, que teremos no segundo mandato de Lula mais um quadriênio perdido. Com isso, depois de 25 anos de estagnação, o Brasil vai ter mais quatro, o que é extremamente grave. Temos de organizar um grupo de pessoas dotadas de capacidade mobilizatória, de competência analítica e de alta seriedade que prepare o país para fazer um deslanche a partir de 2010 – ou que apóie o governo Lula caso ele, contrariando minha expectativa, adquira um caráter desenvolvimentista.

BH – O que falta para um movimento desses existir? Visão de cidadania?

HJ – Essa é uma questão complicada. Não há solução para o país caso se prolongue essa dicotomia entre dois terços de um Brasil ignorante e um terço de um Brasil educado. Esse um terço representa 60 milhões de pessoas, uma massa crítica maior do que toda a população de Argentina, Uruguai e Paraguai somados. Mas, na hora da política, os dois terços, com seu primarismo e sua ignorância, liquidam tudo. Um projeto de neodesenvolvimentismo tem de ter como meta prioritária a incorporação desses setores em níveis educacionais aceitáveis.
BH – Como fazer essa incorporação?

HJ – Primeiramente, com educação: ampliação do ensino primário e secundário e aperfeiçoamento do superior. Isso é uma meta de governo que nem necessita de verbas muito superiores às atuais. O Brasil já dedica uma parcela importante do orçamento à educação; ela apenas não é aplicada com eficiência. Agora, enquanto não se consegue incorporar em níveis superiores de educação as grandes massas brasileiras, é necessário adotar medidas que minimizem os efeitos da deseducação na política.

BH – Esse tipo de raciocínio não implica excluir parte da população do processo eleitoral?

HJ – De forma alguma. Trata-se apenas de sair desse sistema eleitoral absurdamente inadequado, estabelecendo um sistema distrital, puro ou misto – eu prefiro puro, mas se for misto já será um avanço. Reforçar a legislação excludente de partidos de aluguel e estabelecer também a fidelidade partidária. Por fim, instituir um regime segundo o qual, a cada legislatura, se nenhum partido tiver maioria absoluta, será dado um prazo para que se forme uma coligação majoritária com liderança única e projeto único, sob pena de nova eleição.
BH – Isso não seria um parlamentarismo de fato?

HJ – Bem, creio que deva ser um parlamentarismo de meta, não de fato. Estou convencido de que nós precisamos chegar ao parlamentarismo. Mas, para que ele seja eficaz, é necessário que o país disponha de condições eleitorais e partidárias apropriadas. Se nós fizermos essa reforma eleitoral, já começamos a criar um tipo de representação popular que poderá, em uma segunda etapa, se converter ao parlamentarismo sério.

BH – Seus últimos livros, Um estudo crítico da História e O posto do homem no cosmo, fogem do padrão de seus trabalhos, abordando temas como história e filosofia. O que o motivou a escrevê-los?

HJ – Na minha juventude fui particularmente marcado por dois livros:
Sociologia da cultura, de Alfred Weber, que me fez escrever Um estudo crítico da História, e o livro de Max Scheler, O posto do homem no cosmo, que me levou a retomar o mesmo título e o mesmo tema. Quando olhei esses livros, eu disse: “Bem, eu, se tiver, em algum momento, a capacidade para enfrentar essas questões, vou tentar embarcar nesses dois temas”. Um estudo crítico da História foi um trabalho que me tomou seis anos. Foi uma tentativa de analisar o processo civilizatório tomando por base 16 civilizações e considerando previamente o período pré-histórico, visando compreender quais são os fatores que movem o processo, qual é o mecanismo da história.
BH – E o senhor conseguiu identificar esse mecanismo?

HJ – Acho que sim. A história, ou o processo histórico, é produto de quatro fatores. Primeiro, os “fatores reais”, o que Marx chamava de fatores materiais, incluindo o ambiente em que uma comunidade existe. Em seguida, os “fatores ideais”, que são a cultura, entendida no seu sentido antropológico. Depois a liberdade humana e, por fim, o acaso. A história se realiza quando a liberdade humana, exercida por pessoas ou grupos influentes, se encontra diante de uma disposição aleatória de como se combinaram os fatores reais e ideais naquele momento.

BH – Mas e quanto à visão de que são os modos de produção e as forças econômicas que determinam a história?

HJ – Isso foi verdade em alguns momentos. Certamente a partir de 1850 até, digamos, 1930, essa análise marxista coincidia 80% com a realidade do mundo ocidental. Mas ela não tem nada a ver com a formação do islamismo, por exemplo. Observando-se os fatores históricos predominantes, nota-se uma grande presença da religião. Embora, evidentemente, conforme nos aproximamos do tempo moderno, a importância religiosa vá declinando. Mas ela é decisiva até o século XVIII e continua não desprezível, como o Islã demonstra de uma maneira perfeita. Muito importante também é o fator demográfico: as coisas dependem da concentração ou da rarefação das populações. O terceiro fator certamente é o econômico. Outro fator que eu acho extremamente importante é o cultural, não apenas no sentido religioso, mas no sentido mais científico-tecnológico, a visão operacional do mundo.
BH – Para um cientista social, como foi trabalhar com história?

HJ – O conceito moderno de história é extremamente abrangente, vai da origem do homem ao dia de ontem. A meu ver, ela é um método que permite estudar o passado remoto, o passado recente e o presente. O que o sociólogo faz é refletir sobre os dados históricos. Não há boa sociologia sem dados históricos, e a boa história conduz à análise sociológica.

BH – Como o senhor, sendo membro da ABL, avalia a postura da academia de abrir espaço para representantes de outras áreas da cultura?

HJ – Esse movimento é universal. A Academia Francesa também está recebendo cientistas e intelectuais. O beletrismo representou um momento da cultura em que existia uma certa estagnação do pensamento filosófico. Então, a cultura tornou-se lítero-plástico-musical. Mas, em um momento de grande inquietação, como o que estamos vivendo, há um recrudescimento da pergunta filosófica.
IBESP
Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política. Publicou, entre 1953 e 1956, a revista Cadernos do nosso tempo.

ISEB
Instituto Superio de Estudos Brasileiros, instituição de altos estudos, criada em 1956 e ligada ao então Ministério da Educação e Cultura.

Prêt-à-porter
Expressão francesa que significa “pronto para usar”, em contraponto ao que é feito sob medida.

Bolchevique
Partido comunista que, liderado por Lênin, fez a Revolução Russa de 1917.

UDN
União Democrática Nacional, partido político de orientação conservadora e urbana, que existiu entre 1945 e 1965.

Hamletiano
Referente a Hamlet, personagem título da peça de William Shakespeare, conhecido pela frase “ser ou não ser, eis a questão”.

Statu quo
Expressão latina que significa “o estado atual das coisas”.

Sistema distrital
Sistema eleitoral pelo qual o candidato da cargos proporcionais (deputados e vereadores) é votado somente dentro do distrito em que vive, competindo com outros candidatos locais.

Alfred Weber
(1868-1958)
Sociólogo e economista alemão, teórico do estudo de história e ardente opositor do nazismo.

Max Scheler
(1874-1928) Filósofo alemão que desenvolveu uma linha de pensamento chamada “ética material dos valores”.

Karl Marx
(1818-1883) Pensador alemão cujos trabalhos, em especial O capital (1867), influenciaram de forma decisiva a ideologia comunista

Beletrismo
Culto aos aspectos puramente estéticos da literatura.



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