Por José Juarez
Nos atuais tempos pós-modernos, em que os referenciais clássicos se perderam, os valores estão contorcidos numa nova moral transfigurada os heróis já não são mais heroicos. O que temos são os anti-heróis. Muitos são os exemplos desse tipo de personagem, mas um fenômeno midiático atual nos trouxe uma figura que serve como espelho dos valores da sociedade atual, Walter White, o protagonista de Breaking Bad.
Pensemos sobre o que esta personagem representa, e de como seu drama se espelha na vida da maioria das pessoas. Primeiro de tudo, Walter é um professor que descobre ter câncer, e precisa de dinheiro para seu tratamento. Na sociedade norte-americana o esforço em resgatar a imagem desse profissional é, na história recente, notório. Filmes como “Ao mestre com carinho” demonstram essa luta, a de tentar fazer com que a população admire tal ofício, tão necessário para se construir uma sociedade, que diga-se de passagem sem se transformando rapidamente deixando uma impressão explícita de degeneração incontrolável.
Sidney Poitier – Ao mestre com carinho, 1967.
Um clássico, e trágico, esforço do governo dos EUA em valorizar a figura do docente se deu com o fatídico embarque da professora Sharon Christa Corrigan McAuliffe, especializada em História Americana e Estudos Sociais, no ônibus espacial Challenger, que em 1986, segundos após a decolagem, explodiu matando todos os seus oito tripulantes.
Sharon Christa Corrigan McAuliffe
No mundo, inclusive no Brasil, luta-se para valorizar a imagem do professor, mas Walter White vai na contramão. Ele é excelente, um químico brilhante que por problemas pessoais abandonou uma empresa que fundara com amigos na faculdade, que anos após passou a valer bilhões de dólares. Agora, Walter tem que complementar sua renda como caixa de um lava rápido. Mas ao invés de tentar conseguir aumentar sua renda se empenhando mais no trabalho, ser o melhor professor, ele busca uma via mais rápida. Desapontado com o descaso de seus alunos e com sua realidade profissional, Walter abandona o nobre ofício, e chuta o “bico” de caixa para fazer “grana” fabricando drogas, a meta-anfetamina.
Sendo assim, consideremos que Wlater é uma vítima do sistema. Não é só no Brasil que saúde é um privilégio de ricos. Diante da morte iminente, garantida pelo descaso do poder público, ele não vê outra alternativa a não ser ir para o mundo do crime. Mas ele tinha uma alternativa, poderia ter aceitado o dinheiro de seus amigos, os mesmos da empresa da qual abdicara. Mas Wlater é acima de tudo humano, uma pessoa que se renega a ser humilde, que segue seu orgulho. Walter não quer apenas se curar, ele quer deixar uma herança para sua família mas, sobretudo, quer viver. Sua ânsia é a de poder.
Ora, o que torna avida atualmente frustrante, sufocante é o fato de que praticamente ninguém tem poder. Todos vivem disciplinados e controlados pelo Estado, trabalho, família, valores, moral etc. Walter rompe com tudo isso. Ele não se corrompe, não deixa de ser quem é. Homem de hábitos simples, comete talvez um único ato de vaidade, que é comprar um carro caro. No mais ele vive como sempre viveu mas, realizando um desejo: ter poder.
Durante toda a série ele busca isso, quer dominar, ser o melhor, demonstrar isso e punir todos aqueles que se contrapõem, seja de maneira engenhosamente elaborada (como no assassinado de Gus Fring, seu patrão e um dos maiores traficantes de drogas do oeste norte-americano) –
seja de maneira esajeitada e impulsiva (quando atira, sem necessidade nenhuma, e fere mortalmente Mike Ehrmantraut, outrora seu parceiro e chefe da segurança de Gus).
No final da série Walter deixa de mentir a si mesmo, bem como para sua esposa, e admite que realizara seu desejo de poder, nada mais nitiano.
O cientista maluco, ou a valorização do conhecimento? Walter logra êxito em sue projeto graças a química. É uma a visão de que a ciência tem poder. No início da série ele está constantemente salientando para seu parceiro, e ex aluno, Jesse Pinkman dos problemas em não ter prestado atenção nas aulas de química e da importância de dominar a ciência.
Breaking Bad demonstra que saber sempre é bom, e saber ciência pode se traduzir em poder. A educação de Walt não o favorece apenas na produção de droga e bombas.
Sua cultura, raciocínio lógico e rápido, o livra de armadilhas e lhe permite lidar com diplomacia e exímia inteligência com amigos e inimigos. Walt vence, escapa e humilha seus adversários graças a sua inteligência, sua cultura. Breaking Bad prova que saber é útil, tanto para o bem, como para o mau.
Walter, portanto, além de cientista é uma engenhosa mente do crime. Ele sabe dos problemas que suas ações acarretariam, e luta o tempo todo, ora organizadamente, ora desastrosamente, para manter a salvo seus familiares do mundo de crime em que mergulhara. Mas, como cientista do crime ele se assemelha a uma grande personalidade norte-americana, um anti-herói apocalíptico, Nicolas Kasinski, o Unabomber. Kasinski era um professor acadêmico de matemática.
Nicolas Kasinski, preso em 1996 e Walter White, penúltimo episódio da série.
Personalidade intrigante, com alguns desvios psicológicos, desenvolveu uma teoria de que o avanço tecnológico iria destruir a humanidade ao torna-la dependente desta, caminhando para uma atrofia letal. De 1978 a 1995 ele adotou a tática de enviar cartas bombas a cientistas com dois propósitos, atacar aqueles que desenvolviam a tecnologia e forçar o governo a publicar, no New York Times seu manifesto. Em 1996 foi preso e condenado a prisão perpétua. Quando do ocorrido estava ele escondido em uma cabana, com cabelos e barba desgrenhados, exatamente como Walter White.
Cabana que serviu de esconderijo do Unabomber
Walter White e seu esconderijo
Diferentemente de Kasinski, Walter mantém sua lucidez, mas passara meses escondido numa cabana. Decidido a ajudar sua família, ele sai do ostracismo e põe em prática seu mais bem elaborado plano de ação, ora delicado e fino, ora brutal e violento, mas não menos bem planejado. Walter é também o Unabomber.
Mas, esse teorista é também um produto, seja do acaso seja do Estado. Se seu país fornecesse a ele condições de tratamento, dignas, ou se ele como professor tivesse uma remuneração que o permitisse custear sua luta contra o câncer, além de deixar condições de sustento a sua família na sua ausência, será que ele optaria pelo crime? O sistema de saúde dos EUA aparece duas vezes como vilão, na descoberta do câncer de Walt e no custeio da fisioterapia para a recuperação de seu cunhado, Hank (mesmo tendo um plano de saúde, ruim é claro), baleado num conflito com o cartel de drogas mexicano.
Nesse sentido, um Estado que não supre seus cidadãos de condições mínimas, os motiva a buscar soluções extra-legais. Essa realidade da saúde se traduz em outros países, sobretudo no Brasil, em todos os aspectos da vida. Muitos fraquejam e desistem de lutar dignamente para sobreviver e optam pela via mais rápida, que é o crime. Walter é a vítima do sistema que, numa sociedade capitalista e impiedosa, rompe com a legalidade e parte para buscar suas próprias soluções para problemas que o Estado, ou as empresas, cobram para resolver.
Breaking Bad nos apresenta um carismático anti-herói, profundo, conturbado, brilhante mas que, além de tudo isso, é um mártir. Seu martírio é anunciado, e é óbvio, Walter terá uma vida curta, devido a sua doença. Mesmo assim, mesmo com tudo perdido ele luta; por sua família, pelo dinheiro mas, sobretudo, por si mesmo. Luta incansável, dolorosa conflituosa termina de maneira trágica, porém perfeita.
Walter numa das cenas finais da série.
Um herói caótico, com uma moral que faz sentido, mas que caminha por trâmites heterodoxos, tortuosos e invertidos.
Um homem cujas ações resultam naquilo que ele entende como bom, o correto, mas cujas ações para obter esse resultado são totalmente inaceitáveis pelos modelos clássicos de conduta e bondade. Walter White é a síntese de muitos anti-heróis de nossa história, Unabomber, o cientista nazista Josef Mengele, o cientista maluco Nicola Tesla, o gênio incompreendido ou mesmo o estereótipo do professor louco. Walter White é um heróis pós-moderno.
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