O FOGO ETERNAMENTE VIVO
"Este mundo, que é o mesmo para todos, nenhum
dos deuses ou dos homens o fez; mas foi sempre, é e será um fogo eternamente
vivo, que se acende com medida e se apaga com medida" — nessa frase muitos
vêem uma das chaves para a decifração do pensamento de Heráclito de Efeso, que
já na Antigüidade tornou-se conhecido como "o Obscuro".
De sua vida muito pouco se sabe com certeza.
Nascido em Efeso, colônia grega da Ásia Menor, teria "florescido" (o
que parece, significava para os gregos atingir o auge de sua produtividade) por
ocasião da 69a Olimpíada (504/3-501 a.C). Pertencia à família real de sua
cidade e conta-se que teria renunciado à dignidade de se tornar rei em favor de
seu irmão. A obra que deixou está constituída por uma série de frases isoladas,
durante muito tempo consideradas como fragmentos de um suposto texto original;
posteriormente, a crítica filosófica reconheceu que se tratava, na verdade, de
aforismos. Modernamente, a seqüência desses aforismos é apresentada segundo
duas numerações: ou a inglesa, devida a Bywater, ou a alemã, de Diels (o que
justifica a letra B ou D que aparece comumente junto ao número do aforismo).
A apresentação aforismática de seu pensamento e o
estilo intencionalmente sibiliano fazem de Heráclito um dos pensadores
pré-socráticos de mais difícil interpretação. Natural, portanto, que a história
da filosofia apresente uma sucessão de versões de seu pensamento dependentes
sempre da perspectiva assumida pelo próprio intérprete.
Para a solução do "problema heraclítico"
dois pontos parecem oferecer bases mais seguras: a) o confronto das
proposições de Heráclito com seu contexto
cultural (o que o próprio filósofo parece indicar, na medida em que se apresenta
como crítico implacável de idéias e personagens de sua época ou da tradição
cultural grega); b) o estilo de Heráclito, a revelar um uso peculiar da linguagem.
Se há aforismos de Heráclito que não manifestam
obscuridade são justamente os de cunho crítico. Aristocrata, Heráclito não
afirma apenas que "um só é dez mil para mim, se é o melhor" (D 49),
como também faz acerbas acusações à mentalidade vulgar desses homens que
"não sabem o que fazem quando estão despertos, do mesmo modo que esquecem
o que fazem durante o sono" (D 1). A religiosidade popular é também
vergastada: "Os mistérios praticados entre os homens são mistérios
profanos" (D 14 b). E explica: "E em vão que eles se purificam
sujando-se de sangue, como um homem que tivesse andado na lama e quisesse lavar
os pés na lama..." (D 68/5). Mas
nem alguns dos nomes mais reverenciados na época são poupados: "O fato de
aprender muitas coisas não instrui a inteligência; do contrário teria instruído
Hesíodo e Pitágoras, do mesmo modo que Xenófanes e Hecateu" (D 40). Noutro
aforismo Pitágoras é acusado de possuir uma polimatia (conhecimento de muitas coisas) que não
passava de uma "arte de maldade" (D 129), enquanto Hesíodo, "o mestre
da maioria dos homens, os homens pensam que ele sabia muitas coisas, ele que
não conhecia o dia ou a noite" (D 57). Nem Homero escapa: "Homero errou
em dizer: 'Possa a discórdia se extinguir entre os deuses e os homens!' Ele não
via que suplicava pela destruição do universo;
porque, se sua prece fosse atendida, todas as coisas pereceriam..."
(D 12 a 22).
Obras incompletas. São Paulo: Nova
Cultural. 1999.pp 28 - 30. (Os pensadores)